Salvador Dalí, "Premonição da Guerra Civil", 1936 |
por Ricardinho Sales
Cheguei ao hospital em coma induzido. Nada me abalava, ainda assim, vagarosamente abri os olhos: meu cérebro não queria obedecer. O que eu via era coisa que eu sabia que me traía: uma comadre pra mijar, uma foto do Barack Obama e a presença física dela. Tinha um câncer na minha mão. Assoprei, ele caiu no chão e feito bolinha de pinball, saiu batendo pelo quarto todo. Como não podia virar o pescoço, acompanhei-o com as pupilas. Ricocheteou nos ladrilhos, ela ficou sem entender, ele rodou por todo lado, foi quebrando tudo até dar a volta nela, encontrou sua nuca. Nisso, ele reconheceu matéria orgânica e grudou no cabelo. Ela sentiu o baque, pôs a mão e ele engoliu a mão dela. Ela olhou pra mão sem mão e saiu correndo, gritando pelos corredores que não queria o câncer, porque ela era de sagitário, além de loira. A enfermeira chamou o exército e botaram nela uma camisa de força camuflada. Um helicóptero de aeromodelo pousou no saguão do hospital, dispararam nela um raio miniaturizador e Fernão Capelo Gaivota saiu escoltando o brinquedo, voaram até desaparecer, mas antes colocaram a antena do controle remoto na minha cabeça pra eu definir o destino. Como eu tava dopado e em coma, pensava em Alice e nos jogos de bilhar dos livros do João Antônio. A uma hora dessas, ela deve estar numa mesa do Bexiga, com o Chapeleiro Louco, usando o coelho branco de bolão e a mão maneta de taco, toda liliputiana, correndo pelo pano verde.
Eu fiquei então sozinho no quarto. Pensava num globo estroboscópico de furos a envolver o sol. Comecei a ouvir uma batida de rap, entraram pela porta o Tião Macalé e o Antônio Abujamra cantando “Homem na estrada”, querendo me alegrar. Pedi com os olhos pra eles saírem, e não fui atendido. Liguei a televisão e vi o Sílvio Santos apresentando o Jornal Nacional, chamando uma reportagem em que o Ney Matogrosso entrevistava o Maguila num Congresso Internacional de Ciências Proctológicas Elegantes. Depois, cortaram para uma rave num presídio, onde Chitãozinho & Xororó eram DJs, apresentados pelo Cid Moreira em figurino de Hip Hop. “Pôxa vida, que mundo sem novidades...” – pensei comigo, enquanto materializava uma fogueira, depois de transformar meus visitantes em lenha.
Saí levitando, já que não podia andar e, no corredor do centro cirúrgico. Vi o Touro Bandido xavecando a Vaquinha Mococa e lhe oferecendo leite condensado peniano, enquanto dois açougueiros lhes tiravam escamas do contra-filé com tesouras de jardinagem, descarnando-os. Em outro corredor, achei a ala da ortopedia e o polvo Paul debatia com o Lula sobre os tentáculos do poder, enquanto na ala psiquiátrica tinha um trio elétrico no pátio com o Suplicy comandando a festa, cantando axé em versão psy trance. Subi ao topo do prédio, ouvi uma voz na minha cabeça, era o Professor Xavier pedindo pra eu tomar cuidado, porque a Jean Grey confessou lá na mansão que estava apaixonada por mim, e com isso o Wolverine e o Ciclope tavam querendo me pegar pra acertar as contas, muito putos com essa estória. Pensei comigo (e era como se eu falasse em voz alta, o cara é telepata) no que fazer, aí me lembrei dum ritual de pacto com o diabo que li no Livro de São Cipriano, comecei a me perguntar onde eu achava algumas das ferramentas. O Professor me disse pra eu não me preocupar, no que eu falei que o Ciclope é meio bundão, com ele eu não tava nem um pouco preocupado, mas com o Wolverine...
O Professor foi embora e eu fiquei pensativo. Foi aí que eu vi, na relva do hospício, o Pinóquio, o Pequeno Príncipe e o Holden Caufield. O Holden tava fumando maconha com os moleques, iniciando os carinhas. Ele continuava sendo aquele cara chato de sempre. Cheguei na roda dos caras, me arrumaram um baseado de orégano com manjericão, fumamos e trocamos uma ideia. O Pinóquio ia assumir os negócios do Seu Gepeto, que tinha acabado de se aposentar e se associou com uns madeireiros ilegais de umas terras griladas lá da Amazônia, ia montar uma serraria para criar um exército de clones. Me contou sobre seu relacionamento com a Emília e sobre como é complicado uma relação de pano com madeira. Às vezes umas ferpas cortavam o pano e as linhas enroscavam, machucava a boneca, uma situação infernal. E a Dona Benta tava puta da vida porque o Seu Gepeto tinha dançando com uma outra senhora no bailão do fim-de-semana, gastou 2 comprimidinhos azuis com outra coroa e, com isso, ela largou do velho e proibiu o garoto de pau de freqüentar o sítio. Mas eles estavam planejando fugir, com a ajuda do Pequeno Príncipe, que resolveu assumir a homossexualidade e tava juntando as escovas de dente com o Peter Pan e ia fazer uma seqüência de viagens pelo universo. Me chamaram pras viagens, eu até pensei em chamar a Jean, mas ela não ia largar o trabalho de salvar o mundo, ela sempre foi muito workaholic. Tínhamos conversado outra vez sobre ela tirar umas férias, ela não quis e o Professor entrou na minha mente e me fez desistir da ideia. À distância. E tem outra, se eu tirasse a Jean do serviço por uns dias, era suicídio. Aí os caras vinham babando pra cima de mim. Nem o Xavier os seguraria. Por isso estávamos brigados.
Eu tava acertando os combinados, resolvi aceitar o convite de viajar com os moleques, ia dar uma ligada pra Lolita e ver se ela tinha mesmo largado daquele babaca pedófilo do Humbert Humbert e chamar ela pra viajar comigo, transar uma viagem pelo universo, ele tava bravo com ela porque a gente também tava saindo e o coroa não gostou de saber desse novo chifre, depois que ela veio pro Brasil, ele quis tirar satisfação e tentou briga, dei uns tapas nas fuças dele pra ver se criava vergonha. Nisso, o Holden se intrometeu na conversa e quis saber porque ninguém tinha convidado ele, ficou bravo, brigou com a gente e saiu falando que ia voltar com o Mark Chapmam quando o cara sair da cadeia.
Saímos todos pra um boteco e encontramos a ovelha Dolly se tosquiando ao lado da Lessie, enquanto a Xuxa dirigia um filme pornô nos fundos, uma paródia de Brokeback Mountain com o Jece Valadão e o Datena de protagonistas. Ela pediu silêncio, e fizemos de conta que não era com a gente. Achamos uma mesa no canto e ficamos lá. O Pinóquio recebeu uma ligação no celular e teve que deixar a gente, ficamos eu e o Pequeno Príncipe. Conversamos, e o papo foi pro mau caminho: o ninfomaníaco viado ficou me cantando, pedindo pra eu ir dar uma com ele no banheiro, rapidinho. Tirou do bolso uma flor e me deu, me cantando na cara dura. Dei uns safanões nele, deixei ele no chão,larguei uma nota de R$ 20,00 na mesa pra pagar a conta e saí vazado de lá, pra evitar confusão maior. Desencanei de procurar outra coisa pra fazer. Flutuei de novo pro meu quarto e dei de cara com a Hebe e o Jack Bauer transando na minha maca. O Jack ficou bravo porque a Hebe me viu e me chamou de “Gracinha”, me convidou pra brincadeira, no que ele respondeu que não era homem de ménage, afinal era republicano, calvinistae só aceitava ordem do George Bush. Declinei do convite, fechei a porta e fui pro corredor, deixei os dois à vontade, nisso o Tiger Woods passou abraçado de duas enfermeiras, segurando dois tacos de golfe, percebi a perversão que ele ia aprontar. Fiquei do lado de fora do hospital, espiando as colinas verdes que o rodeavam, sentindo a vida passar e esperando mais esse dia chato acabar. Odeio essa monotonia!
Verão 2009/2010
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