Viu-se no espelho da repartição antes de ir para casa e encanou consigo. Foi numas, mas estava naquelas. De se encontrar, e percebeu que os procedimentos dispensavam-no da persignação que fazia no instante. E por esse mesmo instante, parou e refletiu: onde? Estava a preocupar-se, mas não sabia o que iria achar, Nem onde queria chegar. E qual a necessidade disso.
Foi quando se deu conta que tudo aquilo, de repente, era meio ilógico: sabia, um passado existia e nele se continha. Recordo-se de seus recalques e seus pudores e sentiu, assim, um medo que batizou logo de receio: não era um medo leve, mas um certo eufemismo a essas alturas seria pra lá de conveniente. Daí veio o insight: onde foi que me perdi? Em qual dado momento, considerando um fator x, levando-se em conta que qualquer coisa que existe é >0 e <∞ (maior que zero e menor que o infinito), observando-se as somas e os produtos dos meios sendo sempre maiores que as subtrações ou quocientes (independentes de restos ou diferenças), e recordando que a vida dá tantas voltas quanto a espiral de DNA inerente a si, cuja qual lhe permitia, entre outras coisas, não ser uma hiena banguela, uma ameba king-size ou um orangotango manco, onde raios foi se deixar?
As respostas vinham num turbilhão que periplava em sua massa cinzenta. Haviam várias opções, era um teste de múltipla escolha com, talvez, todas certas as respostas; totalmente meio-certas; absolutamente meio-erradas; e a clássica n.d.a. Chateou-se com tal prelúdio de dúvidas essenciais, pois sentia que eram realmente essenciais para que respondesse as questões existenciais posteriores. A priori, a ciência de si é difícil e demanda uma sinceridade imparcial, dessas que ferem e magoam por prazos indefinidos. E, pensando bem, pra que se preocupar com isso agora? Mas, no caminho para casa, enquanto andava, deveria pensar em algo. Fez então uma varredura mental e percebeu: há tempos não fazia um balanço e, como faltava um bom trecho pra chegar em casa, voltou ao ponto de partida: onde? Quando? Por que? Pra que? Quem? Como?
Agora iria até o fim.
Teria sido no início da vida, na porralouquice da adolescência, afoito em viver e experimentar, impulsivo e cheio das razões absolutas que só a imaturidade traz, a busca por novas sensações, todas essas coisas que implicam no que se é possível chamar de formação de caráter? “Não.” – pensou – “Justamente por estar com o caráter em formação é que não podia deixar de ser o que eu não era, pois o que eu era naquele momento ainda tava se definindo. Como poderia aquele moleque que eu fora um dia ter esse tipo de consciência, se ainda não me tinha sido apresentada tal virtude?”.
Definitivamente não era por ali que devia procurar.
Lembrou-se então da fase seguinte a esta, em que, jovem, vivia ainda com intensidade, ainda tenaz. Nessa época, era alegre, divertido, bonito, inteligente. Foi, talvez, digamos, um cara interessante. Alguns resquícios de adolescência lha acompanhavam até o início da idade adulta mas amadurecia depressa demais e aos poucos, esses resquícios se sedimentavam. Imaginou se seu caráter já estava formado nessa época, e achou que sim. Mas se lembrou também que quem acha não sabe nada, que se individualizou muito nesses tempos, trabalhava. Arrumou uma namorada maravilhosa, com a qual se casou; ela lhe podava muito, mas ele a amava a ponto de mudar em si o que não agradava à sua então parceira. A relação era recíproca: também era amado em igual medida pela compenheira, só que ela não fazia idéia do nível de adaptação a que sujeitava seu então marido, e disso só ele sabia. Por isso mesmo, passou à etapa seguinte: não iria encontrar nestas memórias a solução, pois concluiu que sua vida nessa época passava por mudanças demais e essa instabilidade não lhe assegurava ser ele mesmo.
No próximo período que passou a analisar, encontraria talvez os maiores desafios, os grandes altos e baixos nesse gráfico que fazia de sua vida. Sabia que agora, talvez, a porca torceria o rabo: o casamento o transformou em pai de família. E os filhos cresciam, os três, comprovando a evolução da espécie: cada vez mais fortes, sagazes, espertos, ativos. Encantava-se com suas descobertas. O trabalho ia bem, fora promovido. Se dava bem com todos os colegas, desfrutava de situação financeira abaixo das expectativas de sempre, mas de maneira estável. Afinal, cargo público é mamãozinho com açúcar. Nunca fora corrupto, nem de pilhar o alheio. Quem sabe isso não fosse a tal felicidade da qual todos falavam e, aí sim, lhe houvesse oportunidade de ser quem realmente fosse. Mas se lembrou que nunca pôde sentir esse gostinho por aqueles dias: fazia concessões aos filhos que não gostava de permitir; apesar de não ser corrupto, como já dito, seu chefe imediato o era e lhe impunha obrigações ilícitas, as quais fazia com desagrado e pudor excessivos, tudo porque um belo dia o chefe os flagrou dando uns pegas numa estagiária nova, colega recém-chegada na repartição. Cabe aqui uma pausa pra explicar essa situação.
Era uma ninfeta de 19 anos, deliciosa. Sempre ele foi fiel à esposa, mas como Nelson já havia dito, “O brasileiro, se não é canalha na véspera, é canalha no dia seguinte.” E ele é brasileiro e não desistia nunca: a patroa engordara, perdera o viço da pele, o que a embarangou em pneuzinhos e pelancas elásticas, transformando a mulher dos sonhos em coisa intragável até na maior necessidade fálica. Ela só se preocupava com os filhos e esquecia de de sua vida, de sua beleza, sua personalidade. Era ficar à toa vendo novela de dia, reclamação de noite quando os filhos estavam todos em casa. Só os bacuris tinham importância, o que aplacou em nosso amigo, primeiro ciúmes, quando a esposa ainda tinha algo a ser notado, o que o fez, meio que inconscientemente, num mecanismo de defesa, maltratar os filhos, olhando-os com um certo rancor. Como a situação se deteriorava com o tempo, percebeu o erro, entregou os pontos, voltou a amá-los, mas se desiludiu de vez com a companheira. Apesar disso, se esforçou em ser fiel até o último momento, não por convicção, mas por convenção social mesmo... Mas a coleguinha de trabalho... Ah! Aquela estagiária.... Sintonizavam-se bem demais nas coisas do trabalho, o que um pensava, o outro pensava também; o que um fazia, o outro completava. Os olhares se cruzavam a todo instante, se aproximavam para falar próximos e ficava aquela cena de filme, quase beijo, quase sempre. Ela era jovem, cheia de vida, taluda, com tudo no lugar. Dessas de mandar foto como candidata a “Coelhinha da Playboy”. Romântica, mas safadinha na dose exata. As idéias combinavam bem demais, ela o olhava com aquele jeito doce meio sacaninha que derrete qualquer cristão fervoroso. Ela fazia questão de usar o típico uniforme de secretária: salto, meia-calça escura (ou ligas) por baixo da um a saia no joelho; camisette branco de botões, abertos estrategiicamente no decote, exibindo os fartos seios de um jeito que eles não pulavam pra fora nem se escondiam; cabelos longos, pretos e lisos, presos com lápis, formando um coque alto; óculos discretos, que também faziam as vezes de tiara quando soltava os cabelos; prancheta na mão pra fazer anotações, quando colocava a caneta na boca e fazendo aquela expressão de quem ta pensando, ao mesmo tempo que verificava de rabo-de-olho onde ele estava; um olhar penetrante quando vinha, um rebolado malemolente e hipnotizador quando voltava e seus passos faziam no assoalho um som que arrepiava até obreiro de igreja pentecostal. Não, não era uma mulher puta, era uma puta mulher! Feminina, fêmea fatal, que além da forma clássica, tinha um conteúdo também clássico: inocente onde devia ser inocente, tinhosa onde devia ser tinhosa. E essa visão do paraíso ainda lhe dava bola! Repito: ele tentou até onde deu, mas um belo dia ela deixou na mesa dele um bilhetinho, que a procurasse na hora do almoço. Aí, parceiro, a carne é fraca e fidelidade tem limites, até porque, o nesse caso, o duvidoso que lhe aparecia era melhor do que o certo com que estava casado: em casa, comia arroz requentado e feijão amanhecido, e no máximo, uma vez por semana, sábado à noite, uma comida sem tempero e fria, o que causava acúmulo de libido e testosterona e, agora, naquele momento, essa morena, esse monumento de mulher lhe seria um banquete dionisíaco, refeição completa, caviar russo com foie gras, pra desopilar o fígado e o falo. Resumindo: não demorou muito a cabeça de baixo dominou a de cima: foi ao local do encontro e lá, entre sorrisinhos e olhadas sem graça pro lado, ela revelou que achava ele um homem interessante e tals. Aí, querido leitor, num prestou, o nosso (herói?) nem titubeou, deu-lhe um “vem cá minha nêga”, carregou-a pro arquivo morto e mandou ver na lindinha. Foi tão bom que a coisa virou rotina, dia sim, dia outro, horário de almoço era sagrado. Foi quando chefe percebeu que os dois ficavam até mais tarde pro almoço e se aciumou da situação, pois tava de olho grande na menina e, um belo dia, driblou todo mundo, fingiu que foi prum lado, veio pro outro, deu um tempinho e... Ta lá! A estagiária, sainha pra cima, de quatro, gemendo loucamente numa enrabada... O subordinado ia e vinha, batendo a barriga naquela bunda linda... Que inveja (eu também). O chefe deu o alerta da visão, foi aquela coisa de se vestir rápido, mas o cara saiu de fininho. Chamou a estagiária, veio com a conversinha de que queria também, senão rua, ela, muito digna, preferiu perder o emprego. Quanto ao nosso herói, ao ser chamado pelo chefe, deixou claro que ou ele colaborava e fazia o que fosse mandado, ou entregava a cena à esposa, o que transformaria a sua vida num inferno de deixar o capeta com inveja. Como não tinha opção, pois também era um cara acomodado, resolveu ceder à pressão. Já a amante, ainda a encontrava no horário de almoço, num drive-in perto da repartição.
A vida tripla que levava foi a garantia de que ali ele se perdera, mas ainda não foi nesse estágio que se perdeu de si: como seu castelo de cartas marcadas caiu (a garota lhe passou pra trás depois de algum tempo, o esquema de corrupção foi descoberto, o que lhe rendeu um rebaixamento de cargo, implicando em abrir o jogo com a patroa, ocasionando assim o divórcio litigioso com pagamentos compulsórios de pensão alimentícia descontados no contra-cheque, visitas aos filhos agendadas pelo juiz, o olhar rancoroso dos três, já pré-adolescentes e manipulados pela mãe, lhe causando desgosto e remorso, vivendo sozinho numa kitinete alugada num bairro afastado do centro da cidade, sem amigos e com vizinhança que considerava de “baixo nível”, e aí então pôs-se a pensar: “não, não foi aí que me perdi de mim, pois se eu tivesse me permitido nada teria acontecido como aconteceu, as circunstâncias não me engoliriam. Logo, estava perdido há tempo... Ou será que não: Acho que se...” – parou aí o raciocínio para pôr a chave na porta e entrar em casa. A noite já estava baixando.
Então, foi dar uma mijada, saiu sem lavar a mão, foi à geladeira, não achou comida e pegou uma latinha de cerveja, ligou a TV, sintonizou a novela, sentou no sofá, peidou barulhentamente, tirou os sapatos e as meias, começou a coçar as frieiras e deixou tudo pra depois.